Contos, textos, ensaios... Pedro Aruvai

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Historia de um homem desiludido




Vou lhe contar, meu amigo, coisas que não confesso para ninguém, conto-lhe porque em você eu posso confiar, embora não lhe conheça, talvez por isso, irás me compreender. Ouve-me sem repudiar-me, as mazelas de minha vida nesse mundo.

Ele disse:

Nasceu pobre. Teve infância pobre. Cresceu pobre. Viveu pobre a vida toda.

As pessoas dependiam de três tipos de destinos nesse mundo, me disse ele, as bem escolhidas pelo destino, aquelas que tiverem a sorte de nascerem bem de vida, são as pessoas geradas no útero de uma mãe rica.

O segundo tipo são aquelas que até nascem pobre, o destino a escolheu a ser gerada num útero de uma mãe pobre, mas lhe dar a sorte de encontrar a fortuna no futuro.

Mas tem o terceiro tipo de pessoas, coitadas; essas nascem pobre e o destino não lhe reserva nenhum pouquinho de sorte, não lhe prepara nenhuma pequena fortuna, nem mesmo a da beleza, da coragem, da determinação, da força; simplesmente lhe priva de tudo, tornando um ser covarde e amargurado, triste e mal amado, um ser quase inútil nesse mundo.

Dizem que todo mundo tem seu valor. Será ? Uma pessoa que nasce para ser apenas um ser, viver uma vida miserável, de muita luta, angustia e sofrimento, e morrer sem nada ser, qual é o seu valor nesse mundo ?

Esse fora o seu destino. O mundo para ele era assim, lutara feito um escravo, trabalhara muito para conseguir uma vida melhor, mas infelizmente nunca conseguira nada.

Amor, nunca teve.

Filhos, também não.

Havia a esperança de conseguir uma vida melhor, para daí começar a cuidar da vida amorosa, uma esposa, uns filhos, construir uma família. Mas a vida nunca melhorou. A sorte nunca lhe sorriu. O destino sempre lhe virou as costas à fortuna, e sempre lhe mostrou as coisas horríveis, sempre lhe fora muito cruel.

Jogara a vida inteira na loteria. Não precisava ficar rico. Ganhar uma fortuna. Apenas um prêmio qualquer, que lhe desse uma vida digna. Nunca conseguira ganhar nada!

O tempo passou, envelheceu, as doenças tomavam-lhe conta, a velhice lhe castigava, as esperanças diminuíam, a realidade era triste e funesta.

Desistira de tudo!

Não pensava mais em amor, como sempre pensou, uma esposa, uma família, uns filhos; estava no fim da vida, ainda pobre, já velho, estava tudo acabado. Seria mais um ser inútil nesse mundo entre os homens, que atravessara a curta caminhada nesse mundo sofrendo.

Havia desistido de tudo. Amor, casar, filhos, construir família, melhorar de vida; vivia amargurado, triste, revoltado, raivoso consigo mesmo, por ser um traste inútil que nada conseguira na vida. Agora nessa idade, não havia mais nada a esperar. Nem queria mais! Estava decidido, era assim que o destino queria que ele vivesse até o fim da vida, pois tudo bem, estava entregue a ele, era assim que viveria até morrer.

Mas um dia, não sabia como, bateu-lhe a vontade de fazer um jogo na loteria. Dessas vontades que aparecem do nada.

Já havia muito tempo que não jogava mais. Deixara de lado, esse negócio de jogo era para quem havia nascido com sorte. Ele não fora um ser escolhido. Depois de muito tempo sem entrar numa lotérica, não sabia por que estava entrando outra vez para fazer um jogo. Levado sabe lá por qual impulso. Nem pensava em ganhar. Era o ultimo dinheiro que tinha no bolso, de sua miserável aposentadoria. Fez o jogo e foi para casa, e deixou o bilhete num canto esquecido.

Sempre se preocupava em conferir os bilhetes jogados, quando era moço e jogava toda semana, mas nunca ganhou nada. Dessa vez nem lembrou de conferir.

Depois de algumas semanas, ouviu nos noticiários que alguem havia ganhado na loteria e não fora buscar o prêmio. A lotérica, onde havia sido registrado o bilhete premiado, era aquela onde ele havia feito a aposta.

Pensou em procurar o bilhete, mas não lembrava mais onde havia deixado-o. Estava em algum lugar da casa. Procurou pelas gavetas, por onde costumava guardar essas coisas, não encontrou e desistiu. Já havia Jogado tantas vezes e nunca havia ganhado nada, por que a sorte teria lhe sorrido agora ?

Mas nos noticiários se repetia a notícia, todos os dias, a pessoa não tinha ido ainda buscar o seu prêmio, era uma boa quantia, coisa de milhões.

Nem teve o trabalho de procurar o bilhete outra vez. Primeiro porque não era o premiado, depois se fosse, para que queria fortuna agora ? Para que se tornar rico nessa idade ? Agora que já estava velho, e não podia mais viver as delicias da vida ? Do amor! Qual moça queria casar-se com um velho como ele ? Mesmo rico! Se quisesse, seria por interesse, casar-se-ia com ele pelo dinheiro. Não tinha mais idade para dá prazeres a uma mulher. Não prestava mais para nada! Nem filho podia mais gerar. Não queria ser tratado como um velho tolo. Sempre fora um ser inútil quando pobre, e agora rico, continuaria a ser um inútil. Rico ? Mas não sabia se seu bilhete foi o premiado!

Melhor nem procurar o bilhete, se o encontrasse e não fosse o premiado, ficaria mais zangado. Mas se fosse o premiado, ficaria mais zangado ainda. Por que ser rico agora ? Um velho inútil que mal podia carregar as pernas ?

Teve tanta raiva nessa hora que teve vontade de se matar. Pensou nisso. Mas o destino quanto dá para ser cruel com a pessoa, ele o é, era tão cruel que não lhe dera nem coragem para se matar, porque se tivesse, teria se matado.

Tentou esquecer esse bilhete. Mas os noticiários continuavam informando que o ganhador ainda não havia aparecido para receber seu premio. Que havia acontecido com ele ? Perdera o bilhete ? Havia morrido ?

Se tivesse força de homem jovem nessa hora teria pegado a televisão e jogado pela janela, de tão furioso que ficava, só em ouvir essa notícia, e nem sabia que ele era o ganhador. Mas como saber se nem havia conferido o bilhete ? Conferir para que ? Se nunca havia ganhado nada! Não queria sofrer mais que já havia sofrido, ficar mais irado que já ficava, se encontrasse o maldito do bilhete e não fosse ele o premiado. E certamente ficaria ainda mais furioso se o bilhete fosse o premiado.

Havia anotado num papel os números sorteados, que os noticiários repetiam. Nem sabia se havia anotado os números direito, pois eram sempre muito rápidos quando falavam os números, e não dava tempo para anotá-los todos direito. Mas não queria conferi-los.

Um dia comprou meio quilo de peixe para fazer seu almoço, o vendedor embrulhou o pescado num pedaço de jornal velho. Chegou em casa, desembrulho as sardinhas e já ia amassando o papel para jogar no lixo, quando algo escrito no jornal chamou-lhe atenção. Era uma matéria sobre o premio da loteria que o apostador não havia ido buscar.

Notícia velha, papel todo amassado, um pouco molhado pelo produto que havia embrulhado, letras difíceis de ler, mas passando os olhos cansados, e curiosos, sobre as pequenas letras, foi lendo devagar, e leu tudo o que estava escrito no papel. No final da matéria, estavam lá os números sorteados.

Já ia amassando o papel para jogá-lo no lixo, quando lembrou em conferir os números que havia anotado, com os números que estavam escritos no jornal, para ver se eram os mesmos, se havia anotado os números certos. Procurou e encontrou o papel numa gaveta com os números, conferiu e os números estavam certos, faltava encontrar o bilhete. Teria que procurá-lo e encontrá-lo, se quisesse acabar com essa duvida. Onde havia deixado ? Será que havia jogado no lixo ?

Ficou por uns minutos procurando na memoria se lembrar, onde havia deixado aquele bilhete, mas era um homem já velho, não tinha mais uma boa memória. Amassou o pedaço de jornal e jogou no lixo, e foi limpar as sardinhas e prepará-las para fritá-las. De repente uma vaga lembrança passou-lhe pela mente de onde havia deixado o bilhete naquele dia quando chegou em casa.

Havia deixado ao lado da televisão, será que havia caído atrás do móvel ? Havia varrido por trás do móvel depois daquele dia ? Jogara o bilhete no lixo ? Foi a sala, olhou por trás do móvel onde estava a televisão e não viu nada, apenas fios empoeirados. Quando já ia desistindo, percebeu que por baixa da televisão havia uma coisa branca, como um papel, um pedacinho de nada, se destacando para fora. Tentou puxar e não conseguiu. Estava com as unhas curtas. Procurou alguma coisa fina por ali para puxar e não encontrou. Reuniu suas forças e ergueu um pouco a televisão e percebeu que se tratava do bilhete da loteria.

Soprou e o bilhete caiu no chão. Largou a televisão no lugar e pegou o bilhete. Sabia como o bilhete fora parar debaixo da televisão. O ventilador ligado tinha soprado o bilhete e o escondido. Como não estava ligando muito para esse bilhete, nem havia se preocupado.

Mas agora estava com ele nas mãos. Conferi-lo ou ir preparar o almoço ? Ia cuidar do almoço, não tinha pressa para ter raiva. Enquanto preparava o almoço, pensou diversas vezes em parar tudo e ir conferir o bilhete. Mas não fez isso, controlou-se, queria evitar ficar irado antes de almoçar. Mas a curiosidade foi tomando conta de seu ser, instigando-lhe, e crescia como uma coisa angustiante.

Acabou de preparar o almoço e ainda aguentou almoçar. A comida não descia bem. O almoço estava uma droga, tudo por causa daquele maldito bilhete. Deixou a mesa antes de terminar o almoço, não queria comer mais nada, foi conferir o bilhete. Não estava aguentando mais tanta ansiedade. Pegou o bilhete e o papel com os números... seria melhor esquecer isso, rasgar em pedacinhos e jogar essa droga no lixo.

Se o bilhete for o premiado, que vai adiantar ? Que vai aproveitar desse dinheiro ? Ficar rico agora, no final da vida ? Mas se não for o premiado, depois de toda essa aflição ?...

Sentou-se para não cair, sentiu tontura de tanta ansiedade. Seria muito pior quando conferisse aquele bilhete. Será que ia aguentar ? De uma raiva ou de outra. Certamente seria tomado pela fúria, pela ira. Largou o bilhete e o papel com os números e foi caminhar pela rua, passando em frente a lotérica, resolveu entrar, não para jogar, nunca mais jogaria; mas para perguntar sobre o prêmio, se o apostador já havia aparecido.

Torcia para que isso já tivesse acontecido, assim sabia que o ganhador não seria ele e nem precisava conferir aquele bilhete. Mas infelizmente a moça do caixa respondeu que não. Até sorriu, ao perguntar se era ele o ganhador. Respondeu que não. E saiu da lotérica furioso. Irado. Com vontade de quebrar tudo que via pela frente. Mas já era um velho e pior, sem força e sem coragem para praticar essas coisas.

Chegou em casa deitou-se, dormiu, acordou e foi conferir o bilhete. Conferiu numero por numero, e todos os números que havia anotado eram iguais aos números do bilhete. No primeiro momento não sentiu nada. Conferiu tudo de novo, não havia errado, os números eram os mesmos. Era o bilhete premiado. Conferiu de novo até que teve certeza.

Levantou-se de onde estava sentado e foi possuído por um excesso de fúria. Para que queria essa droga agora ? Ficar rico agora para que ? Começou a maldizer da sua sorte e do seu destino, maldita era a sua sorte! Por que não lhe dera essa fortuna a sessenta anos atrás ? Vivera a vida toda inutilmente. Sofrera como um cão, gastou toda sua energia de homem jovem como um ser miserável. Agora que não tinha mais força, que não servia mais para nada, a sorte lhe dava a fortuna.

Não queria mais fortuna nenhuma! Nascera miserável, vivera a vida toda inutilmente, assim morreria. Começou a quebrar tudo que tinha dentro de casa, irado, furioso, passou a vida toda querendo um pouquinho de dinheiro para viver uma vida digna, apenas isto, nada mais que isto! Não queria ser rico, apenas viver dignamente como um cidadão de bem. Não conseguira, e agora que já estava no fim da vida, a riqueza lhe aparecia... para que ?

Tomado pela ira, quebrou quase tudo que pode dentro de casa, e nessa fúria bestial, se feriu, mas a raiva não parou por aí, resolveu atear fogo na casa e ir morar na rua. Agora era um morador de rua.

Ninguém da vizinhança havia entendido porque ele havia feito aquilo. Somente ele sabia a sua dor. Há coisas que não precisam explicações. Mas elas estão aí nos olhos de todo mundo, só não ver quem não quer ver.

Fiquei sem saber o que dizer a esse sujeito, resolvi escrever essa historia triste como uma homenagem aos homens desiludidos desse mundo.



"HISTORIA DE UM HOMEM DESILUDIDO"

autor: PEDRO ARUVAI
25 de fevereiro de 2011